23 de set. de 2008

Ensinar o Holocausto no Século XXI

Que Absurdo!

“livro direccionado à compreensão do fenómeno do anti-semitismo”

Prefácio:

Em boa hora, decidiu a Via Occidentalis publicar a tradução do livro Ensinar o Holocausto no Século XXI, editado pelo Conselho da Europa.
Trata-se, como é referido na apresentação do mesmo, de uma obra com uma preocupação essencialmente pedagógica com vista a fornecer um material de apoio – simultaneamente conciso, rigoroso e de fácil consulta – a professores e alunos.
Ensinar o Holocausto não é um desafio fácil. Portugal não foi ocupado por Hitler durante a IIª Grande Guerra, nem sofreu as consequências do Holocausto no seu solo. Mas esta feliz circunstância histórica leva a que, praticamente, apenas a população judaica em Portugal tenha laços afectivos, memórias concretas, uma relação directa com as vítimas do genocídio nazi. Com efeito, quantos jovens em Portugal poderão dizer “o meu avô contou-me...”? Obviamente bem poucos.
Talvez por isso o Holocausto nunca foi objecto de debate público em Portugal como o foi, embora tardiamente, nos países ocupados pelo nazismo. Assim para a maioria esmagadora dos alunos e professores portugueses de hoje, o Holocausto é um acontecimento de que ouviram falar na televisão, através de alguns filmes, de alguns livros ou de alguns textos inseridos em manuais escolares – apesar de há uns anos para cá o currículo escolar contemplar mais detalhadamente o estudo do nazismo. Mas para os alunos – e eu tive a oportunidade de o constatar pessoalmente várias vezes – o Holocausto é um acontecimento abstracto, visto frequentemente quase como uma ficção.
O facto de já se terem passado mais 60 anos, torna também mais difícil o ensino do Holocausto, não só pela capacidade de atenção e interesse dos alunos, como da própria motivação de professores e autores de manuais. Sabemos como a nossa sociedade – e não só a portuguesa – está virada para a vertigem da actualidade e para o efémero: o que é hoje acontecimento deixa de o ser amanhã. E neste contexto, sessenta anos é uma eternidade...
Mas não são estas as únicas dificuldades do ensino do Holocausto, nem talvez as principais. “Não há história mais difícil de contar em toda a história da Humanidade”, afirmou Hannah Arendt. Porquê? Em primeiro lugar pelo sofrimento intenso de um povo, estilhaçando com fragor insuportável os limites do entendimento humano. Até hoje, o genocídio nazi, programado, sistemático e colectivo permanece para a civilização humana como a referência ética do mal absoluto.
Mas também porque é uma história que põe radicalmente em causa os valores em que fomos formados, as nossas certezas mais profundas: que através da cultura e da educação o homem se vai aperfeiçoando; que é tanto mais moral quanto mais instruído; que a ciência é uma escola de progresso, racionalidade e aperfeiçoamento. O extermínio nazi deitou por terra essa perspectiva: ocorreu num dos países mais industrializados, povoado por uma das nações mais cultas e instruídas do mundo. “Esperávamos o pior, mas não o impossível”, afirma uma sobrevivente. Depois do Holocausto ficámos a saber que o impossível se tornou uma possibilidade em aberto.
Não é, pois, fácil ensinar o Holocausto e sobretudo educar contra o Holocausto. Mas é um assunto que não pode ser evitado porque tem a ver com os próprios fundamentos da nossa civilização. Auschwitz tornou-se, pela negativa, património da humanidade.
Na história negra deste período há, no entanto, alguns raios de luz representados por homens e mulheres que contra tudo e contra todos, tiveram a coragem de se opor à barbárie, escondendo e salvando judeus e não judeus, resistentes ou simples pessoas, arriscando frequentemente a própria vida. Ensinar o Holocausto no século XXI evoca esses “Justos das nações” título a eles atribuído por Israel em reconhecimento da sua acção de salvamento. Entre eles nunca será demais lembrar Aristides de Sousa Mendes, cônsul de Portugal em Bordéus (França) que à revelia do seu governo e arriscando a sua carreira e bem-estar pessoal e familiar concedeu milhares de vistos à multidão de refugiados que procurava desesperadamente escapar da Europa ocupada.
Portugal declarou a neutralidade política durante a guerra e desde o seu início muitos judeus e outros perseguidos tentaram escapar aos nazis obtendo um visto de trânsito em Portugal. Mas, à medida que chegavam mais refugiados, a política de fronteiras foi-se tornando mais apertada: os cônsules só podiam conceder vistos depois de autorizados pela polícia política e pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros e, após a ocupação alemã de Paris em Junho de 1940, apenas a quem dispusesse de um bilhete de saída de Portugal e de um visto de entrada num país de exílio. Apesar de todas estas dificuldades, houve mais de cem mil refugiados que conseguiram salvar-se através de Portugal, a maioria entrando clandestinamente ou com vistos dados por Aristides de Sousa Mendes. “Era realmente meu objectivo salvar toda aquela gente, cuja aflição era indescritível”, afirmará mais tarde Aristides de Sousa Mendes.
A sua coragem teve um preço exorbitante: Salazar demitiu-o e o cônsul ficou na miséria sendo obrigado a viver da caridade para sustentar a sua numerosa família até à morte em 1954. Outros diplomatas portugueses souberam também fazer prova de humanidade e compaixão: Sampaio Garrido e Teixeira Branquinho, na Hungria; José Luis Archer, em Paris; Lencastre e Menezes, em Atenas; Giuseppe Agenore Magno, cônsul honorário em Milão, todos eles concederam vistos sem autorização, comprometendo as suas carreiras e vidas pessoais.
No entanto, nenhum salvou tantos, nem pagou um preço tão elevado como Aristides de Sousa Mendes. Talvez por isso, no Yad Vashem, em Jerusalém, onde o cônsul tem uma árvore plantada em seu nome na Ala dos Justos, as autoridades israelitas considerem que entre todos, foi Aristides de Sousa Mendes que sozinho e contra o seu próprio governo salvou mais vidas. “Talvez seja por isso que a sua árvore é a mais alta de todas”, concluem com um sorriso...
A terminar, não quero deixar de saudar a editora Via Occidentalis pela publicação deste livro. Espero que ele contribua decisivamente para ajudar professores e alunos a conhecer e a reflectir sobre a pior catástrofe do século XX. Esta é sem dúvida a melhor maneira de impedir a sua repetição.

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